quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A tirania da saúde

No passado dia 9, Sexta-feira, o Público dava destaque nas primeiras páginas a um estudo norte-americano que mostra que ter uns quilos a mais é benéfico em termos de esperança de vida, que são uma defesa em caso de doença e que quem tem peso a mais (mas não em exagero) até morre menos de certos cancros não relacionados com a obesidade, não se verificando diferença nos restantes. Uma boa notícia para os gordinhos e uma má notícia para estes escuteiros de serviço que abundam nas televisões a dar lições de moral aos telespectadores.

Na mesma edição, o jornal trazia na última página a habitual e imprescindível crónica de Vasco Pulido Valente (VPV), que, talvez por mera coincidência, alertava para os perigos deste zelo sinistro do Estado em obrigar as pessoas a ser saudáveis. Uma crónica, para não variar, excelente.


VPV é conhecido pelo seu pessimismo, mas aqui até foi pouco, quando escreveu:
à campanha contra quem fuma [vai seguir-se] a campanha contra quem bebe e a campanha contra quem come o que não deve ou come demais. E talvez, mais tarde, a campanha contra o "sedentarismo" e a falta de exercício.

Ora, na verdade, estas campanhas já começaram, e em força. O problema é que, ao contrário das leis que restringem o fumo em lugares públicos, estas não protegem a saúde dos
outros mas a dos próprios "prevaricadores". O argumento dos gastos públicos com a saúde é particularmente revoltante, pois a razão de ser dos cuidados de saúde universais e gratuitos é a solidariedade, a humanidade. Ora, a solidariedade é um acto de bondade, uma dádiva, não pode privar de liberdade o objecto dessa solidariedade. Se assim fosse, o Estado teria legitimidade para proibir os cidadãos de correr quaisquer riscos. Seria um Estado totalitário. Aliás, este é precisamente um dos argumentos do costume contra o Estado-social: quando o Estado se comporta como um paizinho dos cidadãos (Nanny State), estes acabarão por se tornar escravos do Estado. Um adolescente percebe esta evidência melhor do que ninguém. Eu não sou contra o Estado-social. Mas se é para nos tornar a todos dependentes dum Estado que tudo nos dá mas tudo nos tira, então vivo bem melhor sem ele.

No dia seguinte, dia 10, Sábado, VPV, numa crónica intitulada
Uma questão política, retomou o tema comentando o facto de no dia anterior uma das notícias sobre o estudo ter como título A obesidade também é uma questão política , perguntando «por que razão diz respeito aos Estados a obesidade do sr. A ou da sra. B ou mesmo de uma parte considerável da plebe democrática». E responde que «não se chega à perfeição que o Estado e a cultura exigem sem algum tempo e muito dinheiro. Como antigamente o ouro, a prata e as rendas separavam a opulência da miséria, o corpo e a saúde são hoje um símbolo de superioridade. E, pior ainda, um meio de promoção social.» Mas o pior é que antigamente ninguém era moralmente criticado por ser pobre. Hoje, ser gordo ou ter vícios começa a ser um vício de carácter; não ser perfeito é um defeito grave e altamente reprovável.

Seguem-se excertos da notícia e a crónica
(acesso pago) do dia 9 na íntegra.


Estudo norte-americano diz que não faz mal ter uns quilos a mais
09.11.2007, Teresa Firmino

Quem tem excesso de peso poderá morrer menos de alguns cancros do que... as pessoas com peso normal. Mas isso não é sinal para avançar para a despensa

Aqueles quilinhos a mais que muita gente lhe diz que tem de perder, afinal pode até deixar-se ficar com eles. Até lhe podem ser benéficos, caso tenha infecções ou seja submetido a uma cirurgia, funcionando como uma reserva de recursos e fazendo com que acabe por viver mais tempo. Em linhas gerais, este pode ser o resumo de um estudo sobre a relação entre o peso corporal e as principais causas de morte nos Estados Unidos, mas que está a causar polémica.

(...)

Quem tenha um excesso de peso moderado poderá até morrer menos de alguns cancros do que as pessoas com peso normal, uma conclusão surpreendente. Quer dizer que, depois de tantos anos a ouvirmos falar dos riscos do peso excessivo, até podemos ser ligeiramente gordos que não faz assim tanto mal? Sim, podemos, segundo este estudo, que analisou os dados relativos a milhões de pessoas, coligidos desde os anos 70.

De facto, nos cancros não relacionados com a obesidade (pulmões, pele ou linfomas), nas doenças respiratórias, em situação de ferimentos e infecções em geral, as pessoas com excesso de peso (mas sem serem obesas) até parecem estar mais protegidas do que as têm um peso normal. Para as doenças cardíacas, o estudo não encontrou diferenças estatísticas entre as pessoas com peso excessivo e normal. Ter uns quilos a mais, conclui ainda o estudo, nem sequer aumenta muito o risco dos cancros relacionados com a própria dieta, nos quais se incluem o cancro do cólon, da mama, útero, pâncreas, esófago ou rins.

Agora a crónica…
Por bondade
Vasco Pulido Valente

Quando a imprensa inglesa e americana anuncia que a proibição de fumar em restaurantes não teve efeitos visíveis na saúde pública, em Portugal essa mesma proibição entrará em vigor a 1 de Janeiro de 2008. O que me espanta nisto não é a extravagância do acto em si. Duas coisas me parecem muito piores. Em primeiro lugar, a facilidade com que em todo o Ocidente o Estado resolveu intervir na vida privada de cada um e negar radicalmente o direito de propriedade (impedindo, por exemplo, que se criem restaurantes de fumadores), sem um protesto sério em parte alguma. Em segundo lugar, a rapidez com que o fumador foi socialmente estigmatizado e o vício de fumar (há 20 anos, normal e aceitável) se tornou quase o que era antigamente uma blasfémia, uma profanação ou uma heresia.

Isto não anuncia nada de bom. Por um lado, porque fatalmente à campanha contra quem fuma se vai seguir a campanha contra quem bebe e a campanha contra quem come o que não deve ou come demais. E talvez, mais tarde, a campanha contra o "sedentarismo" e a falta de exercício. Não custa nada argumentar com as doenças que o álcool e a gordura provocam (tantas como o tabaco), ou retirar do mercado "produtos de risco", ou vigiar o que os restaurantes servem. Por outro lado, já se viu que o poder do Estado para converter a populaça ao objectivo tenebroso de "melhorar o homem" é hoje ilimitado. A metamorfose das democracias do Ocidente em totalitarismos de uma nova espécie não incomoda ninguém. Não uso a palavra descuidadamente (não uso, de resto, nenhuma palavra descuidadamente): para Hitler (que não fumava, nem bebia), o alemão perfeito não andava muito longe do perfeito espécime do Ocidente contemporâneo.

Imagino muitas vezes quem, de facto, quererá este mundo sufocante e asséptico, obcecado com a "saúde"? Gente, como é óbvio, com pouca imaginação. Por mais forte que seja o culto e a idolatria do corpo, a velhice chega. E, com ela, a irrelevância, a obsolescência, a solidão. Esta sociedade de velhos trata muito mal os velhos. A ideia (e a propaganda) de uma adaptação contínua é uma grande e cruel mentira. Os velhos são um embaraço. Um peso que se atura, que se arruma num canto, que se mete num "lar". Setenta anos de esforço para durar acabam num limbo à margem da verdadeira vida, quando não acabam no sofrimento e na miséria. O Ocidente está a criar um inferno. Por bondade, claro.