sexta-feira, 16 de maio de 2008

Legislar a ortografia?

Além de não reconhecer validade aos argumentos dos apologistas do Acordo Ortográfico, oponho-me a ele antes de tudo porque sou contra a ingerência estatal na ortografia; esta não deve ser objecto de legislação, pelos mesmos motivos por que não deve haver uma lei que defina o que é gramaticalmente correcto. Assim como os gramáticos e linguistas registam e sistematizam os usos linguísticos dum povo, seleccionando o que há de melhor ou mais representativo, dando relevância à norma culta, à expressão da língua na literatura, também os mesmos estudiosos deviam proceder analogamente quanto à grafia das palavras. É isto que acontece com a língua internacional actual de facto, o Inglês. Não há nenhuma academia britânica supervisionando a língua, como acontece com o Espanhol ou o Francês. E, no entanto, não há nenhuma selva ortográfica no Inglês, ao contrário do que a maioria pensa que acontece quando a ortografia não é regulada por lei. Aliás, penso que esta ausência de regulação é um factor de dinamismo e vitalidade da língua inglesa. Todos os anos, milhares de palavras novas surgem no vastíssimo léxico inglês. Como é que isto seria possível se tivessem de passar pelo crivo burocrático dum comité linguístico como uma Academia de Ciências de Lisboa, que demorou centenas de anos de azurradas para editar o seu dicionário — 15 anos para a letra A em 1793, talvez outros tantos para um novo volume para a letra A em 1976 e agora mais 13 anos para a versão completa de 2001? Não se vê como.

«Então como surge uma ortografia se não houver uma lei ou autoridade central que a imponha?», pergunta o típico português, de mentalidade estatista, que não concebe vida fora do manto protector do Estado. Simples: espontaneamente! Foi assim que aconteceu com a grafia do Inglês e de outras línguas não-reguladas. Foi assim que aconteceu com a notação matemática, com a notação musical, com as próprias línguas (i.e. as suas regras), que evoluem naturalmente e não precisam de decretos para tal. A notação musical, por exemplo, não surgiu tal como ela é hoje; antes evoluiu lentamente ao longo dos tempos — a notação moderna deve-se a Guido d'Arezzo. Pegue-se numa partitura antiga de canto gregoriano e vê-se lá uma partitura que faz lembrar a actual, mas muito mais rudimentar, com menos uma linha horizontal, com menos sinais distintos de duração das notas, etc. Os símbolos matemáticos também evoluíram ao longo de séculos. Geralmente, coexistem notações concorrentes, sobrevivendo uma das alternativas. O maior matemático português de sempre, e um dos maiores do mundo da sua época, Pedro Nunes, inovou a notação matemática do seu tempo, por exemplo. O símbolo de integral, aquele S esticado, porque se trata duma soma, , introduzido por Leibniz, impôs-se naturalmente às alternativas, provavelmente por ser mais prático. Tivesse havido uma autoridade incumbida da escolha do símbolo em vez de terem sido os matemáticos em liberdade e hoje usaríamos talvez uma notação menos prática, embora mais "racional" na opinião dos burocratas que a escolhessem.

Mas voltando às línguas naturais. O Inglês, que apresenta divergências gráficas (e gramaticais) significativas de país para país, não precisa duma ortografia unificada, nem duma regulação legal dela para que haja intercâmbio literário no espaço anglófono. Os livros britânicos são vendidos e lidos sem problemas nos EUA e vice-versa. Alguém imagina os deputados ingleses a aprovarem uma lei que obrigasse os ingleses a escrever color em vez de colour porque senão a variante americana seria preponderante e a variante inglesa seria votada à indiferença? Um cenário surreal. Mas aqui em Portugal as pessoas acham normal que meia dúzia de gramáticos nos queiram obrigar a escrever ótimo e aspeto para as regras ortográficas ficarem mais parecidas com as brasileiras (regendo-se pelas quais os brasileiros continuarão a escrever aspecto, diga-se de passagem). Ora, da mesma forma que os gramáticos devem registar e estudar a língua, aconselhar esta ou aquela forma, os dicionaristas devem recolher os reais usos gráficos nos meios escritos de referência, e não prescrever formas inexistentes, que é o que querem fazer agora.

Por outro lado, a imposição política duma ortografia pseudo-unificada como esta pode contribuir mais para o afastamento das duas normas do que para a sua aproximação. Primeiro, esta reforma introduz muitas divergências até agora inexistentes, como (nova forma portuguesa / forma brasileira, inalterada): aspeto/aspecto, infeção/infecção, conceção/concepção, respetivo/respectivo, receção/recepção, caraterística/característica, etc. Segundo, um maior intercâmbio cultural entre Portugal e o Brasil podia resultar em duas normas mais próximas que as actuais e até mais próximas que as duas novas normas (o Acordo não acaba com a existência de duas normas de facto, uma portuguesa, outra brasileira) decorrentes do Acordo. Uma norma internacional que podia ter emergido naturalmente se o intercâmbio cultural existisse realmente (e não é por causa das divergências gráficas que ele não existe — os livros do José Saramago, do Miguel Sousa Tavares e doutros são lidos no Brasil com a grafia portuguesa; logo, uma ortografia mesmo que fosse igual nos dois países não criaria como que por um milagre esse intercâmbio) e se não tivessem feito a reforma de 1911, para a qual não consultaram o Brasil, podia ter sido baseada na manutenção das consoantes que fossem lidas em algum dos países: Por exemplo, tanto portugueses como brasileiros escreveriam facto, ótimo, aspecto, contacto, ator, etc. Mas isto é uma possibilidade apenas do que podia ter acontecido. Nada como a liberdade para se saber qual a melhor solução.

Não é precisa uma autoridade central para que emerja (ou será emirja?) um padrão na comunicação. (Aqui ia usar a palavra norma, mas já foi contaminada com o sentido de imposição.) O mundo está cheio de exemplos, além daqueles mais académicos que referi em cima. Por exemplo, todos os condutores portugueses usam sinais de luzes para comunicar de formas não previstas no código da estrada. Não foi a DGV nem a Assembleia da República quem inventou o piscar dos máximos para conceder prioridade a quem não a tem, o piscar agressivo "sai da frente", muito menos o sinal "vais passar pela polícia", que consiste em duas piscadelas de máximos com uma duração que emergiu espontaneamente através da interacção livre, espontânea e descentralizada de milhões de condutores. Chama-se a isto ordem espontânea, conceito muito usado por Hayek e outros liberais.

Em Portugal, a tradição política de mudar a ortografia por decreto começou na I República. A produção literária em língua portuguesa dos séculos anteriores sobreviveu à desregulação gráfica, portanto. Foi uma espécie de pecado original, que deu origem à odisseia de desacordos ortográficos do século XX. Não é por acaso que foi um regime socialista e ditatorial o autor da profunda reforma ortográfica de 1911; o mesmo regime que impôs ao país, sem consulta, uma bandeira alheia à identidade nacional (além de pirosa), com as cores do partido único. A desculpa que deram foi a de a tal reforma ser necessária à alfabetização do povo; como se fosse por causa do ph de pharmacia que as criancinhas não conseguiam aprender a ler… Na minha opinião, foi por causa da ausência de democracia e desse analfabetismo generalizado que conseguiram alterar radicalmente a ortografia sem consultar o povo. De facto, a um analfabeto tanto lhe faz que os outros escrevam pharmacia ou farmácia, orthographia ou ortografia, philosophia ou filosofia, lyceo ou liceu, caravella ou caravela, escriptorio ou escritório. A actual reforma em discussão suscita muita mais reacção da sociedade precisamente por esta ser muito mais letrada hoje do que nos idos de 1911. E esta intenção de simplificar a ortografia (algo de que as línguas de cultura prescindiram), em 1911, introduziu uma quantidade considerável de acentos gráficos, cujas regras de utilização pouca gente domina na perfeição. Não é precisa uma entidade reguladora para definir-se uma norma; basta o uso. Não me parece que tenha sido por acaso que tenham sido os fenícios a inventar a escrita alfabética: eram um povo de comerciantes, precisavam da escrita diariamente nos seus negócios. A necessidade levou à solução mais prática: um alfabeto.

A imposição duma ortografia à revelia do povo que a usa pode ter efeitos desastrosos. A quantidade de intelectuais e outras pessoas que se opõem a esta reforma ortográfica devia ser suficiente para que os nossos políticos fossem mais cautelosos. Na verdade, penso que não há nenhuma lei que obrigue à adopção por privados desta ou daquela grafia. Sendo assim, os escritores, as editoras, os jornais, os cidadãos em geral podem recusar-se a deixar de usar a grafia em que aprenderam a escrever e a ler. Podemos acabar por ter meio país a usar esta grafia artificial e a outra metade a usar a actual. A acontecer, seria preocupante. Mas talvez desse caos surgisse uma norma natural e livre. De qualquer modo, o que espero é que, quer por os políticos serem tomados por uma sensatez tantas vezes ausente, quer por pressão da sociedade, este Acordo não venha a entrar em real uso em Portugal. Se os nossos governantes insistirem na asneira, podemos sempre recorrer a uma espécie de desobediência civil, continuando a escrever e a publicar com esta grafia que é nossa. Lancei o repto no De Rerum Natura, e o Desidério Murcho gostou da minha ideia. Espero que agrade a mais gente.

As pessoas têm uma ligação afectiva às palavras, que é tão mais forte quão mais forte é a sua ligação à língua escrita. Não é por acaso que o mais activo detractor do Acordo seja um poeta, Vasco Graça Moura, que tem sido galardoado com vários prémios pela excelência das suas traduções. Os políticos não têm legitimidade para quebrar estes laços afectivos. Além de ser factor de estagnação e de escolhas piores do que aquelas que emergem do uso livre da língua, a legislação da ortografia é antes de tudo uma intromissão ilegítima na liberdade de quem usa a língua e cuja vontade devia ser respeitada, ao invés da vontade da meia dúzia de voluntaristas que decidiu por nós, sem nos consultar. Esta é a razão principal, a liberdade. Deixei-a para o fim porque infelizmente é um argumento que não convence ninguém hoje em dia neste país de súbditos. Um país onde uma das expressões para bom Português é "Português de lei"…

12 comentário(s):

João Gante disse...

Há mais do que uma simples opinião no seu artigo, o que é de louvar. Quanto ao boicote à aberração que nasce hoje, é algo em que participarei naturalmente. O asco é algo de instintivo.
Começa a ser sistemático para Portugal sair a perder nas relações internacionais. Os encontros e visitas diplomáticas que não redundam em sorrisos de circunstância ou negócios de milhões que em nada beneficiam o país, trazem-nos invariavelmente dissabores. Ao menos face a esta imposição - aprovada, já agora, por quem não raras vezes demonstra o maior desprezo pela língua - há a possibilidade de nos opormos de forma prática.

Fliscorno disse...

Bom texto. Discordo da mudança arbitrária deste acordo mas reconheço a necessidade da padronização. Não precisa de ser imposta mas pode ela mesmo impor-se, pelo reconhecimento dos que a usam.

Quanto ao que aqui se refere sobre a língua inglesa e, acrescentaria eu, sobre o alemão, falta um aspecto fulcral para explicar porque não precisaram de nenhuma academia de letras para padronizar a língua. Refiro-me ao facto da bíblia ter sido impressa em inglês, no inglês corrente da época, o que serviu como a referência linguística de facto.

Leituras:
http://en.wikipedia.org/wiki/Luther_Bible
http://en.wikipedia.org/wiki/William_Tyndale
http://en.wikipedia.org/wiki/Early_Modern_English

João Ferreira disse...

Texto muito bom, Pedro! Também eu continuarei a escrever como tenho feito até aqui.

Fico à espera dos próximos textos...

Miguel Galrinho disse...

Opinião com a qual concordo a 100%, e que já vi defendida várias vezes, mas nunca tão bem argumentada, nem de perto nem de longe. Excelente texto!

lino disse...

Claro, preciso, ilucidativo e bem escrito. Excelente posta.

de.puta.madre disse...

Fiquei assim:
"Proporcionalidade 33"
A unanimidade seria um atentado descarado à Democracia. Dai o apelo de pompa à unanimidade, para parecer credível, sentido e sério. Mas ali, o sério, não era sério, era como se escrevessemos cérios: os deputados na sua ceriedade (que tanto se pode ler cera, como de uma aproximação postiça a sério, a serie) lá estavam eles votantes cérios no cumprimento do seu dever de representatividade de um que nós cá sabemos. Mas a UNANIMIDADE teria de ser transparente, translúcida, inequívoca para a opinião pública. E os deputados estavam ali, num acto cério de representação, representação democrática do povo a sério. E no acto e desacto, uma espécie de amar-ranço, a representação dos deputados como crianças infantis da sociedade civil votaram da forma acordada: a transparência translúcida da Unanimidade. Mas como não estamos com paciência para jogar com as palavras como de-puta-dos, somos breves como eles a despachar: 15 de Maio de 2008 a Língua Portuguesa foi previamente esquadrinhada a régua e esquadro para que a Unanimidade fosse prevalente em qualquer quadrante. Os também cérios deputados que votaram contra o Acordo - quiçá previamente sorteados a bem ou à chapada - lá estavam cérios, na sua ceriedade de proporcionalidade 33 ( mil assinantes da petição): nem mais um nem menos um. A matemática não engana. Façam as contas! Estamos em MORTUGAL.


F-se! Mortugal! Ninguém ali esteve a representar-te a sério, mas de um que nós cá sabemos.

Klatuu o embuçado disse...

Sem dúvida o seu artigo merece a reflexão dos conjurados da *Nova Águia*.

Cumprimentos.

VFG disse...

Subscrevo esse plano de desobediência civil e proponho, inclusivamente, que se comece a usar outra Bandeira Nacional: branca com cruz azul, por exemplo. Talvez um dia possamos recuperar algum charme da grafia anterior a 1911.

RFC3251 disse...

Alguém imagina os deputados ingleses a aprovarem uma lei que obrigasse os ingleses a escrever color em vez de colour porque senão a variante americana seria preponderante e a variante inglesa seria votada à indiferença?

Hm... em Inglaterra (e na maior parte da Commonwealth) esceve-se "colour" (tal como "neighbour", "odour", etc.). A versão americana é que é "color" (e "neighbor", etc.).

Em todo o caso, um acordo ortográfico não é uma lei. Existe um acordo ortográfico "em vigor" em Portugal (de 1945) e está cheio de palermices que ninguém respeita.

Infelizmente, há professores de Português muito burros que insistem (por exemplo) em não falar nas letras K, W e Y, porque não constam desse acordo ortográfico.

Pedro Machado disse...

«Hm... em Inglaterra (e na maior parte da Commonwealth) esceve-se "colour" (tal como "neighbour", "odour", etc.). A versão americana é que é "color" (e "neighbor", etc.).»


Eu sei. Você é que me parece que leu apressadamente a frase e por isso não a entendeu. Releia-a, p.f. E a frase seguinte também: "Mas aqui em Portugal as pessoas acham normal que meia dúzia de gramáticos nos queiram obrigar a escrever ótimo e aspeto para as regras ortográficas ficarem mais parecidas com as brasileiras (...)"


«Em todo o caso, um acordo ortográfico não é uma lei.»


Mas os livros escolares e os textos oficiais têm de o seguir. Já sabemos que em Portugal as leis não são para cumprir. Lei ou não, o Acordo não será seguido, assim o espero.

«Existe um acordo ortográfico "em vigor" em Portugal (de 1945) e está cheio de palermices que ninguém respeita.»

Quais?

«Infelizmente, há professores de Português muito burros que insistem (por exemplo) em não falar nas letras K, W e Y, porque não constam desse acordo ortográfico.»

Um belo exemplo de como legislar-se sobre a ortografia é um factor de bovinidade geral.

João Roque Dias disse...

Parabéns pela lucidez da análise.

Samuel de Paiva Pires disse...

Andava à procura de uma abordagem a esta questão partindo das premissas da liberdade individual e da ordem espontânea. Ainda bem que encontrei este excelente texto. Permita-me que o cite na íntegra lá para o burgo.